quarta-feira, 11 de abril de 2012

Filme: Grace of My Heart (Voz do Meu Coração) - Por Luiz Domingues

Ao final da década de quarenta, a revista Billboard cunhou o rótulo: "Rhythm and Blues", ou  também conhecido pela abreviatura, "R'n'B', para designar um novo derivado do Blues, que havia fundido-se a variados estilos jazzisticos, tais como o Jump Blues; Swing, e Hard Bop. Algum tempo depois, no avançar dos anos cinquenta, o R'n'B tornara-se extremamente popular na América do Norte, ao alçar, para assim adquirir o seu quinhão de estrelato, grupos vocais negros em predominância, dotados com extrema qualidade musical. 

Entretanto, ao final da década de cinquenta, sob uma Era pré-Beatles e pré-Folk (observo esse aspecto pela evidente explosão da vertente baseada nas ditas, "Protest Songs", no caso da Folk Music), as gravadoras mantinham ainda o hábito em contratar compositores fixos, para alimentar tais grupos com material a ser gravado, pois a imensa maioria dos seus intérpretes nem sonhavam em compor as suas próprias canções. Inúmeros compositores talentosos começaram as suas carreiras nessas condições, ao final dos anos cinquenta, casos de Carole King e Gerry Goffin, que formavam um casal de compositores profissionais, contratados por uma gravadora.

É nesse contexto que acontece a história do filme: "Grace of My Heart") no Brasil, batizado como: "A Voz do Meu Coração", a designar um conceito adulterado da intenção do título em inglês, embora haja uma certa proximidade léxica em sua intenção), assinado pela diretora, Allison Anders, lançado em 1996. 

Assim como a película, "The Rose" (de 1979), que nunca explicitou ser a biografia de Janis Joplin, de fato, "Grace of My Heart" também não autoproclamou-se a biografia oficial da compositora/cantora e pianista, Carole King, no entanto, as semelhanças e insinuações com o vida e obra dessa grande artista, não dão margem para dúvida de que na verdade,foi essa a sua intenção.

Dessa forma, a história narrada não oferece outra hipótese a não ser pensar-se na biografia de Carole King, desde o seu surgimento como uma compositora contratada
 para alimentar diversos intérpretes mantidos por uma gravadora, a trabalhar no famoso, "Brill Building". Este a tratar-se de um edifício localizado em Nova York, onde muitos compositores trabalhavam para fornecer criação à indústria fonográfica, mas que sobretudo, foi muito mais um conceito do que a designar um espaço físico propriamente dito, visto que acostumou-se a dizer que havia um "estilo Brill Building" dentro do R'n'B comercial e praticado mais ou menos entre 1958, quando Elvis Presley sinalizou a primeira mudança em seu direcionamento artístico, às vésperas de seu alistamento militar e a estender-se mais ou menos até meados de 1964, quando a "British Invasion" comandada pelos Beatles, arrebatou a América do Norte.

A personagem, Edna Buxton (ILLeana Douglas), que é uma garota rica, e virtual herdeira de um império industrial criado por seu pai, contudo, embora houvesse essa expectativa familiar em relação ao seu futuro, ela sonha em ser cantora. Edna participa de um teste para ser cantora de uma gravadora e passa, mas logo a seguir, os dirigentes da companhia percebem que ela também possui talento como compositora e pianista. 

Então, o produtor, Joel Milner (interpretado por John Turturro), a contrata e daí em diante, a sua carreira passa a subir, como compositora de sucesso a sustentar o repertório para grupos vocais, sobretudo femininos, orientados pelo gênero "R'n'B" e cantores solo. Por uma sugestão de Joel Milner, Edna adota doravante um novo nome artístico como: "Denise Waverly".


Denise envolve-se emocionalmente com outro compositor, Howard Laszatt (Eic Stoltz), e ambos vão trabalhar juntos. Após alguns sucessos conquistados por ambos, no âmbito pessoal, as coisas vão mal, pois o casamento rui, em face da infidelidade contumaz da parte de seu marido, Howard, e ela vai embora do Lar. 

Os tempos mudam e ao chegar a metade dos anos sessenta, a "British Invasion", aquela safra composta por bandas de Rock oriundas do Reino Unido, praticamente sepulta a figura tradicional do compositor de aluguel nas gravadoras norte-americanas. Pois com o sucesso dos Beatles e de outras bandas inglesas, e a seguir com as norte-americanas, a nova ordem no mercado fonográfico passou a ser o próprio compositor lançar-se como intérprete, a tocar e cantar as suas próprias músicas. O mesmo fenômeno estava a acontecer com os artistas egressos da música Folk norte-americana, com Bob Dylan e Joan Baez, em sua comissão de frente. 

Denise conhece então o compositor e vocalista de uma banda orientada pela vertente da Surf-Music, muito famosa, que envolta na lisergia do emergente movimento Hippie, deseja produzi-la, como uma artista solo, ao usar todo o experimentalismo típico dessa Era. Eles envolvem-se a formar um casal e decidem ir morar juntos em uma comunidade Hippie. 

Todavia, esse rapaz, Jay Phillips (interpretado por Matt Dillon), faz uso sem parcimônia de drogas alucinógenas, e sob um momento marcado pela insanidade, eis que entra no alucinadamente no mar a caminhar e delirar, a caminhar e delirar e o inevitável ocorre, ao afogar-se. 

No entanto, isso não caracterizou um suicídio, propriamente dito 9ao estilo da história contida nas várias versões cinematográficas do filme: "A Star is Born"), mas na verdade, fora um ato de loucura, mesmo, pura e simples.

Abalada com essa perda, e com três filhos para criar, ela reencontra o seu primeiro produtor, Joel Milner, e finalmente lança o seu primeiro álbum solo, no início dos anos setenta, a conter lindas canções, sob a força de letras expressivas; e sob uma interpretação, notável... o LP em questão, recebe o seguinte título : "Grace of My Heart", o nome do próprio filme, e então, torna-se inevitável não associá-lo ao LP "Tapestry", obra de Carole King na vida real, lançado em 1971, como o seu debut como artista solo e considerado uma pequena obra-prima.
Fica a ressalva no entanto, que "Tapestry" é geralmente reverenciado como uma obra-prima e debut, e sim, é uma obra-prima, mas não foi o primeiro disco solo de Carole King, na vida real, visto que um ano antes, em 1970, ela havia lançado, "Writer", sem o devido êxito, que alcançaria com todos os méritos por "Tapestry".




O importante, foi que este filme, independente ou não de assumir a sua inspiração na biografia de Carole King, montou uma história muito boa ao revelar bem o painel musical a envolver essa questão da indústria fonográfica norte-americana centrado em tal riquíssimo período da história, a envolver o panorama do R'n' B, a música Pop, a Folk Music e o Rock.

Mostrou a derrocada dessa predisposição em torno dos compositores de aluguel, mas a abrir uma nova perspectiva para tais profissionais, visto que muitos partiram para carreiras artísticas, a buscar espaço como cantores e instrumentistas, igualmente, caso da própria, Carole King, mas a revelas outros nomes importantes nesse bojo, como Neil Sedaka, Connie Francis e Neil Diamond (pode-se incluir Burt Bacharach e Leon Russell nessa lista), entre outros.
O filme mostrou o avançar da psicodelia na América e o início de uma Era de ouro na música Pop, com a solidificação de uma nova tendência ao final da década de sessenta, em torno da corrente conhecida como "Soft-Rock", que avançou adiante a solidificar-se nos anos setenta, cujo um dos seus principais ícones, foi e sempre será, Carole King. Isso sem deixar de mencionar as citações a outros artistas e tendências musicais expressas, a demonstrar conter em seu roteiro, uma riqueza de informações muito grande. 
Pelo ponto de vista cinematográfico, trata-se de uma produção agradável ao extremo, com ótima direção de arte, figurinos, fotografia caprichada, um bom elenco para dar vazão ao bom roteiro, diálogos interessantes e sobretudo, uma trilha sonora de primeira qualidade. C reio que por tudo isso, esse filme torna-se uma opção ótima para o leitor aprofundar os seus conhecimentos sobre o panorama da música Pop em geral, em um período dos mais inspirados da história.

Sobre as coincidências com a biografia oficial de Carole King estas são muitas, de fato. A começar pelo LP "Tapestry", que eu citei acima e marcou a grande transição na vida dessa artista.Que Carole King fora reconhecida como uma compositora excelente, ninguém discordava até então, mas quando o LP Tapestry explodiu, ficou claro que a sua assumida nova condição como cantora e pianista, solidificou-se. Realmente, carole King e o seu primeiro marido, Gerry Goffin, trabalharam juntos no edifício Brill, de Nova York, em meio a diversas outras duplas formadas por compositores que ocupavam os estúdios de ensaio e criação onde trabalhavam arduamente para compor as canções encomendadas, em expediente comercial.

Para corroborar a inspiração em fatos reais, o personagem, Joel Milner (John Turturro), foi baseado em dois produtores famosíssimos dessa fase ocorrido no período entre os anos cinquenta, e os setenta: Phill Spector e Don Kirshner. Spector e Kirschner, seguramente bateram ponto ali. Spector teve dúzias de hiper sucessos em sua carreira e trabalhou com os Beatles em sua fase final, sob um clima tenso e foi o produtor do LP "Imagine", uma grande obra da carreira solo de John Lennon. No imaginário de qualquer Rocker setentista, o nome de Don Kirschner remete ao seu clássico programa de TV, "Don Kirschner's Rock Concert", onde dúzias de bandas sessenta-setentistas apresentaram-se e cujas imagens alimentaram programas brasileiros na mesma década de setenta, tais como o: "TV2 Pop Show" (posteriormente conhecido como "Som Pop"), "Sábado Som", "Rock Concert" etc. Artistas como: The Shirelles; Everly Brothers e outros grupos de R'n'B, reais, foram retratados através dos grupos fictícios, mostrados no filme. 

O personagem defendido pelo ator, Matt Dillon (John Phillips), foi claramente inspirado na personalidade do baixista/cantor/pianista e compositor, Brian Wilson, membro do sensacional grupo, "The Beach Boys". Brian está vivo nos dias atuais (2012), apesar de apresentar nítidas sequelas em decorrência do seu abuso em prol de drogas pesadas usadas em demasia, no entanto, o seu irmão, Dennis Wilson (que foi baterista dos Beach Boys), realmente faleceu por conta de um afogamento. Neste caso, a licença poética em ter feito com que o personagem  caminhasse placidamente em direção ao mar, foi uma clara referência ao filme : "A Star is Born" ("Nasce uma Estrela"), aliás, este é um filme que teve três versões no cinema até aqui: 1937, 1954 e 1976.


Neste citado filme, quando o personagem, Norman Mainer, deprimido pelo sucesso de sua mulher, que é uma atriz em profundo momento de ostracismo, faz com que sem outra alternativa para enfrentar o seu próprio orgulho ferido, ele resolva cometer o suicídio ao entrar a caminhar passivamente no mar, para não voltar mais. Não pareceu ser o mesmo caso aqui nesta representação, pela sutileza em denotar ter sido por um motivo aleatório e claramente a mostrar falta de controle mental ante os efeitos das drogas alucinógenas. É claro, a comparação com as biografias dos irmãos Wilson, Brian e Dennis, é uma mera especulação da minha parte.

E finalmente, o filme encerrar-se com o surpreendente lançamento do Lp "Grace of My Haert", certamente uma alusão ao grande "tapestry", já citado. Nessa predisposição, a intenção foi ótima a mostrar a nova "Denise/Edna", a alcançar o tão sonhado reconhecimento e assim, tal qual Carole King, o talento sempre existiu, desde 1958, mas somente agora o grande público finalmente tomou conhecimento dessa realidade. "It's Too Late, baby", Carole, ou melhor, Denise, finalmente chegou para consolidar-se no mercado musical.
Sobre a trilha sonora de "Grace of My Heart", é evidente que ela se mostra espetacular. Com a supervisão de Burt Bacharah e Elvis Costello, e reforçado por canções de outros atores, Joni Mitchell, incluso, trata-se de um desfile de canções com um padrão de excelência melódica e harmônica, muito grande. Sofisticadas, mas sem perder o sentido Pop, é bom deixar claro, são agradáveis parta ouvir-se e cantarolar, mas elegantes em sua resolução em face dos seus arranjos. Entre muitas canções, cito algumas que valem muito a pena: My Secret Love Miss Lily Banquett,
Born to Love This Boy, Juned Groovin' on You, God Give me Strenght, How can I Get Through to You, Hey There, A Boat on the Sea, Man From Mars (esta composta por Joni Mitchell), e muitas outras, ou seja, um repertório classe "A", sem ressalvas.

Illeana Douglas é muito boa atriz, mas não canta, portanto, a sua voz foi dublada, com o talento vocal de Kristen Vigard a dar o suporte nesse sentido, em todas as canções que a personagem, "Denise Waverly", cantou.

Produção a cargo de Ruth Cahrny, Daniel Hassid e um certo... Martin Scorsese, este último a tratar-se de um ítalo-americano que definitivamente gosta e conhece a história da música Pop, entre as décadas de cinquenta e setenta, como ninguém. Roteiro e direção sob a responsabilidade de Allison Anders. Foi lançado em setembro de 1996.
A reação do filme nas bilheterias foi boa, a película gerou uma reação positiva por retratar um argumento com tantas referências diretamente extraídas da história da boa música norte-americana, e dessa forma, realmente só poderia agradar, pelo menos a maioria das pessoas que reconhecem esse esforço empreendido por tal produção.

Já da parte da crítica, a reação não foi unânime. Sim, muitos jornalistas reconheceram as muitas virtudes apresentadas por este filme, no entanto, opiniões em contrário também foram manifestadas. Um certo crítico reclamou da falta de sincronia labial da atriz, Illeana Douglas, nas partes em que dublou a voz da cantora, Kristen Vigard. Um outro sujeito reclamou sobre a fluidez quebrada nos diálogos, a ressentir-se de melhoras ideias.

Enfim, é difícil contentar a todos, porém fica a ressalva de que tem crítico que interpreta mal a sua função. Apenas buscar defeitos na obra alheia, mediante o uso de uma lente de aumento como ferramenta, não é exatamente a função do nobre autor de uma análise. Em determinados casos, as críticas são tão impiedosas e desprovidas de coerência, que implicitamente fica a dedução que em seu íntimo, o analisador de uma obra artística, e geralmente os que opinam com essa predisposição negativa, estão a serviço de grandes empresas midiáticas, nutrem internamente a presunção de que criariam certamente melhor que os autores das obras que analisam.
Sobre o elenco, além dos atores citados, destacam-se também outros intérpretes de peso, por exemplo, Bridget Fonda (como Kelly Porter), a interpretar uma cantora lésbica, mas absolutamente reprimida em sua sexualidade não declarada, e inspirada diretamente na cantora e compositora, Lesley Gore, coautora da canção: "My Secrett Love Miss Lily Banquett". Lesley, que interagiu com toda a cena cinquenta/sessentista oriunda do Brill Building, declarou à época do filme, que não gostou da maneira como foi retratada, ainda que veladamente. E mais: Pasty Kensit (como Cherryl Steed), Bruce Davison (como John Murray), Jennifer Leig Warren (como Doris Shelley), Chris Isaac (como Matthew Lewis), David Clennon (como Dr. Jonesy Jones) e outros. Vale a pena destacar que o famoso ator, Peter Fonda (pai de Bridget Fonda, por sinal), cumpriu uma participação  oculta, ao gravar uma locução para dar voz a um "guru", chamado Dave.

Esse filme teve várias exibições na TV a cabo e na rede de canais abertos, também, ao longo dos anos noventa e início dos anos dois mil. O disco com a sua trilha sonora, elogiadíssima e não seria para menos, vendeu em formatos, VHS e DVD e atualmente, via internet, é encontrada no YouTube, em versão integral e gratuita, com facilidade. eu gosto desse filme, por ele ter acompanhado, mesmo que veladamente, três fases importantes da carreira de Carole King, e também por conter ótimos atores envolvidos, boa direção de arte e sobretudo, ótimas canções.

Recomendo ao leitor, pois retrata uma época rica da história da música norte-americana, e naturalmente a abranger em seu alcance e influência sob âmbito mundial.
Resenha publicada inicialmente no Blog do Juma, em 2011. Posteriormente, esta resenha foi revista e aumentada para integrar-se ao livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll", através de seu volume I, a partir da página, 166.


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