sábado, 5 de maio de 2012

Filme: Tommy - Parte 1 - Por Luiz Domingues


No caso do filme, Tommy, é óbvio que faz-se mister um preâmbulo a comentar sobre o álbum homônimo lançado pelo extraordinário grupo de Rock britânico, The Who, para que fique claro ao leitor um dado, ou seja, quando resolveu-se filmar a história contida nesse disco conceitual, na verdade, a sua fama no imaginário Rocker, já era enorme e certamente a conter uma boa base enquanto roteiro contido em seu libreto.
Quando o The Who lançou o LP duplo, "Tommy", em março de 1969, naturalmente já era uma banda sedimentada no panteão do Rock britânico e mundial, há algum tempo. Portanto, há tempos havia atingido um estágio na carreira onde qualquer artista alojado nesse patamar, gera a natural expectativa prévia a cada novo lançamento que prepara. E no auge da carreira (no caso do The Who, tal auge não seria efêmero, mas a revelar-se duradouro por muitos anos), assim que o disco foi apresentado aos seus fãs e à crítica, não desapontou, e pelo contrário, despertou uma reação entusiasmada, pois o resultado apresentado ultrapassara em muito, qualquer previsão otimista.

Isso por que muito além de constar em tal novo álbum, uma coleção de ótimas canções, causou furor a constatação de que se tratava de uma Ópera-Rock, portanto a configurar um álbum temático a conter uma história muito interessante, devidamente amparada por um libreto.

O The Who lançou o álbum e imediatamente iniciou a sua turnê a promovê-lo com grande sucesso, e poucos meses depois, em agosto de 1969, dentro de sua agenda de shows, constou a sua apresentação no festival de Woodstock, o que tratou por potencializar ainda mais a fama dessa obra, mesmo que no filme oficial do festival, não constasse a sua execução na íntegra e nem mesmo  no disco com a trilha sonora do evento, mas a constar apenas algumas faixas.

No ano seguinte, 1970, a banda repetiu a dose no festival da Ilha de Wight, na Inglaterra e também, ao lançar o seu álbum ao vivo, "The Who Live at Leeds". Em 1972, uma versão ao vivo, com o suporte da Orquestra Sinfônica de Londres, foi encenada e lançada em disco. Os membros do The Who cantam em algumas faixas dessa versão, mas não tocam, a não ser com alguma discreta inserção de Pete Townshend à guitarra, mas na maior parte do concerto, predominou o arranjo orquestral.
E neste caso, registre-se a presença de outros artistas para cantar, casos de Ringo Starr, Stevie Winwood e Rod Stewart. Enfim, "Tommy" já se tornara uma lenda instantânea desde o seu surgimento e com o passar do tempo, tal apreço por parte do público aumentou exponencialmente.

A seguir, foi inacreditável, mas o The Who não deitou em berço esplêndido com o sucesso obtido por "Tommy", e assim, o seu novo álbum com material inédito, porém a revelar-se um álbum tradicional de carreira, chamado: "Who's Next", foi aclamado como um dos seus melhores discos lançados ao longo da sua trajetória e pouco tempo depois, o grupo teve fôlego o suficiente para lançar uma outra Ópera-Rock tão sensacional quanto, "Tommy", chamada: "Quadrophenia", e que também tornou-se muito cultuada e chegou às telas do cinema, devidamente adaptada (a resenha sobre o filme baseado na Ópera-Rock, "Quadrophenia", também consta deste livro), neste caso, ao final dos anos setenta.

Bem, de uma forma bastante resumida, cabe antes de falar sobre o filme em si, narrar em que consiste a história básica de "Tommy". Pois na história original, a ambientação foi a da primeira Guerra Mundial ((no filme, optou-se em modificar-se a ação temporal para a II Guerra Mundial). Nesse cenário a envolver o conflito armado, um capitão da Real Força Aérea britânica (Raf/Royal Air Force), é dado como morto em batalha, mas algum tempo depois, ele surge em casa, após longa convalescença e surpreende a esposa com outro homem e como agravante, o seu filho, cujo nascimento ele nem acompanhara, está a ser criado por esse estranho. 

Inconformado, ele mata o sujeito, mas a criança, Tommy, assiste a cena criminosa. Pressionado a dizer que não viu, não ouviu e jamais falará nada a ninguém sobre o que presenciara, o menino adquire um trauma muito forte que se pronuncia como uma síndrome a seguir, para torná-lo cego, surdo e mudo. 

Muitas tentativas para que o menino melhore, são feitas, mas ele cresce sem esboçar uma melhora. Já adulto, o menino consegue enfim enxergar  um vulto de uma personalidade que parece ser algo sobrenatural, que o induz a buscar uma luz que ele encontra na representação das bolas de um jogo eletrônico que é conhecido como "Pinball". Ele enfim encontra um interesse que o tira da catatonia crônica em que encontrava-se desde a infância, ao ter testemunhado o crime e de uma forma inexplicável, torna-se um mestre em tal jogo, ao derrotar pessoas que contam com os sentidos em ordem, mesmo sendo ele, privado de ver, ouvir e falar. 

Idolatrado por tal feito entre os admiradores desse brinquedo eletrônico, cria-se em torno dele a ideia dessa habilidade ter sido um dom paranormal diretamente provido por forças celestiais e assim, a sua família cria uma espécie de seita, onde Tommy torna-se um guru, mesmo que de forma inconsciente e assim, milhões de seguidores passam a venerá-lo. Infelizmente, isso torna-se um negócio muito lucrativo e a sua família enriquece com tal exploração da fé inocente da parte de seus seguidores. 

Tommy enfim recobra os seus sentidos quando quebra um espelho, mas deparar-se com a realidade, demonstra não gostar da seita que fora montada pelos seus familiares, para enganar as pessoas. Há uma revolta generalizada quando os seguidores percebem o engodo, todavia, na prática, não havia sido culpa de Tommy essa exploração da fé alheia. Ele fica isolado ao final, mas aparentemente aliviado por ter descoberto a sua verdade pessoal.

Ora, ao ler assim, em um resumo, parece ser uma história bem ingênua e talvez o leitor raciocine que a comoção que a obra do The Who causou com um impacto tão marcante que angariou, tenha sido algo exagerado. No entanto, eu esclareço que nas entrelinhas, a história tem uma profundidade muito maior do que o seu enredo sugere conter em sua superfície.
 Primeiro ponto: o The Who, sempre foi reconhecido como o mais britânico entre os britânicos grupos de Rock do Reino Unido, tanto que reconhecidamente foi sempre considerado o expoente máximo da vertente sessentista, "Mod", uma manifestação cultural tipicamente britânica e que extrapolava as fronteiras da música, mas a observar muitos outros signos a agregar
 em seus valores. Portanto, por trazer em sua história a evocação da guerra, com o inerente enaltecimento da "RAF" em torno do protagonista, Capitão Walker, o pai do personagem Tommy, tornou-se evidente que esse nacionalismo, calou fundo em suas expectativas, para reafirmar a sua predileção fanática pelo The Who.

Como um segundo ponto, é muito interessante a questão sobre como as deficiências que Tommy adquiriu por uma questão de somatização ante o trauma que passou, revelam-se simbólicas, senão observo: ao perder o contato visual, auditivo e a fala, significa dizer que o rapaz perdeu o seu contato com a comunicação externa e assim, o seu mundo passou a ser o seu âmago.
Nesses termos, a sua libertação ocorre exatamente quando ele consegue estabelecer o contato com o seu "eu" interior, através da imagem no espelho que ele só consegue ver e a consequente luz que enfim encontra na bola de "pinball".

Terceiro ponto: a ganância que motivou a família de Tommy a explorar a experiência do rapaz, portanto, a revelar a profunda falta de escrúpulo de qualquer Ser humano que use a fé alheia para vender ilusões, geralmente para pessoas humildes e amealhar o dinheiro fácil desse tipo de estelionato revestido por charlatanismo. No caso de Tommy, além dele ter sido uma vítima dessa ação torpe, a questão do charlatanismo não é de sua responsabilidade, logicamente. 

A grande questão aqui, foi que a iluminação que Tommy conseguiu acessar, foi um processo natural, mas que só fez sentido para ele, portanto, fica nas entrelinhas, mais uma mensagem subliminar: que cada um faça o seu mergulho interior, pois a resposta a ser encontrada é exclusiva e por conseguinte, somente é acessada pela própria pessoa.  Em suma, as descobertas feitas são conquistas advindas sem a intercessão da parte de terceiros. Por tais nuances, o libreto de Tommy, é rico ao extremo, portanto, justifica a substância de uma história boa, e claro, devidamente alimentada por canções memoráveis, que tem vida própria por sua beleza e comporiam tranquilamente o repertório de outros discos da banda, se lançadas separadamente, contudo, unidas em formato de uma "Ópera-Rock", tornaram-se irresistíveis.
Quando resolveu-se adaptar a obra para o cinema, o The Who já estava a desfrutar de todos os louros de mais uma vitória grandiosa em sua carreira, com o seu novo álbum, "Quadrophenia" (lançado em outubro de 1973), a fazer um sucesso estrondoso, sendo curiosamente também uma "Ópera-Rock" e há quem o considere melhor que "Tommy" (eu deixo claro, gosto igualmente de ambas as obras).

Conforme eu já salientei em outra matéria publicada aqui mesmo neste Blog, Ken Russell já ostentava uma carreira coroada pelo sucesso, quando partiu para esse projeto audacioso em transportar a genial obra do The Who, às telas. Com carta branca de Pete Townshend & cia, além das bênçãos do poderoso produtor do The Who, Robert Stigwood, eis que o velho Kenny deu asas à imaginação e dessa forma, exerceu todo o seu potencial criativo, para produzir tal filme, como uma colagem dotada por cenas espetaculares, plenas em alegorias, metáforas e lisergia onírica.
Algumas modificações foram realizadas em relação à obra original, no libreto que deu sustentação às músicas que foram gravadas no álbum duplo do The Who, lançado em 1969. Como por exemplo, o pano de fundo do filme, que foi baseado na II Guerra Mundial (1939-1945) e não a falar sobre a Primeira (1914-1918), como na história original. Na versão original do álbum, o pai de Tommy o amante da sua mãe, mas Russell modificou tal enredo, ao inverter os fatos e assim ofertou mais dramaticidade à história, com o pai, capitão Walker, a ser duplamente prejudicado, pela traição da mulher e perda da vida, assassinado pelo seu rival e amante da esposa. 

Cinco músicas novas foram compostas para alinhavar melhor o roteiro cinematográfico e vários versos das músicas tradicionais foram mudados para evitar choques anacrônicos. 

A referências à espiritualidade são múltiplas. Por exemplo, a cena com a "Rainha do Ácido" (interpretada por Tina Turner), a "Paixão de Crsto" é evocada com Tommy a ser martirizado como um Messias, em meio à uma "bad trip", dentro de uma cápsula que simula uma ampola. 

Isso sem contar que a ida dele a uma igreja, onde a liturgia revela-se em torno da figura da atriz, Marilyn Monroe, sensualizada em forma de estátua e adorada como uma Deusa libidinosa, é algo extraordinário enquanto uma alegoria. Toda a questão da interiorização do garoto, Tommy, onde ele encontra uma resposta dentro de si, através da simbologia da bola de Pinball (pelo fato de ter fechado seus canais de exteriorização, como eu já mencionei anteriormente), é muito significativa. Assim, como a sequência onde, após quebrar um espelho, Tommy volta a poder usufruir dos seus sentidos recuperados.
A quebra do espelho simbolizou o rompimento de uma dimensão em relação à outra, e o fato consumado em ter caído no mar, remeteu ao nascimento, com o feto a deixar o seguro e aconchegante mundo, do útero materno. A crítica ao mercantilismo das religiões é explícita. Tornado um "guru", as pessoas seguem-no "cegamente" (nesse aspecto, a inversão de valores), e embora sejam
teoricamente saudáveis, pois na prática, agem  como os verdadeiros cegos, surdos & mudos, por gastar rios de dinheiro para comprar bugigangas que simulariam a iluminação semelhante à do seu Messias. Com artefatos para tampar olhos, boca & ouvidos, estes crédulos jogam Pinball a esmo, para tentar obter essa dita iluminação, mas fracassam, mediocremente.

Para os jovens que nunca viram tal película, eu revelo que a história gira em torno de um menino, chamado : Tommy, que perde o seu pai em batalha aérea ocorrida na II Guerra Mundial, e este tratava-se de um oficial da aeronáutica britânica (Royal Air Force, a mítica, "RAF"). Mas o pai na verdade, não estava morto e quando volta para a sua casa, flagra a sua esposa com outro homem a ocupar o seu âmbito familiar e a criar o seu filho. Uma tragédia ocorre, e o menino testemunha tudo. Com o choque, entra em um processo psicossomático, onde torna-se cego; surdo & mudo. Ou seja, está aí a primeira metáfora, com Tommy a fugir do mundo exterior, para refugiar-se em seu próprio interior recôndito.

Ou seja, mais uma metáfora para alertar-nos sobre o perigo do fundamentalismo dogmático, versus iluminação individual. Cabe acrescentar agora algumas questões subliminares e um panorama do impacto gerado no mundo e no Brasil em específico, quando de sua estreia em nossas salas de cinema, no meio dos anos setenta.
Resenha publicada inicialmente no Blog do Juma em 2011, e republicada posteriormente no Site/Blog Orra Meu, em 2012. A posteriori, esta resenha, foi revista, aumentada e unificada para fazer parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll", e encontra-se disponível em seu volume I, a partir da página 190.

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