sábado, 21 de julho de 2012

Filme: Privilege - Por Luiz Domingues


O diretor, Peter Watkins não tinha o mesmo prestígio que Tony Richardson, Jack Clayton; Ken Russell e John Schlesinger, outros diretores de cinema, tiveram na Inglaterra, durante os anos sessenta. Até que realizou: "Privilege", em 1967 e... continuou em não o possuir.

Todavia, essa é uma perspectiva vista sob o âmbito meramente comercial, senão vejamos; Watkins, na verdade, demorou a aventurar-se no caminho do cinema autoral, propriamente dito, visto que os seus trabalhos anteriores haviam sido direcionados à TV, e controversos pelo forte teor político, por isso ele houvera enfrentado problemas sérios com restrições que as emissoras de TV, impingiram-lhe por conta de controvérsias do conteúdo por ele proposto.
Em seu primeiro trabalho, chamado, "Culloden" (lançado em 1964), Watkins fez uma abordagem sobre o episódio da insurreição Jacobina, ocorrida em 1745, e cujo desdobramento político/ideológico foi um dos acontecimentos que serviu como preâmbulo da Revolução Francesa. No entanto, a controvérsia dessa abordagem deu-se quando Watkins deixou nas entrelinhas a conexão com a questão das motivações geopolíticas que culminaram ma Guerra do Vietnã e nesses termos, certamente que incomodou setores midiáticos com tendências conservadoras. O seu segundo trabalho, foi: "The War Game", lançado em 1965, ainda mais contundente, a mostrar-se claramente um filme em tom documental a demarcar o repúdio de Watkins em relação ao advento das guerras, principalmente as ditas guerras injustas, deflagradas para exercer o mero controle geopolítico do mundo da parte de super potências.  

Exatamente como em "Culloden", "The War Game" teve muitos problemas ao redor do mundo, com várias emissoras a criar empecilhos para a exibição da obra. Nesses termos, Watkins partiu para o cinema autoral com o mesmo ímpeto em criticar a manipulação da parte do poder, ao lançar: "Privilege", no início do anos de 1967. Por conta de todo esse perfil que Watkins possuía em torno da sua visão sociopolítica e costumava assim expressar-se incisivamente em seus filmes/documentários anteriores, naturalmente que mesmo que o mote de "Privilege" tenha sido o Rock (com a extensão à ideia da idolatria), na verdade, a sua intenção, enquanto mensagem foi outra, naturalmente. Mesmo assim, é claro que "Privilege" pode ser considerado como um "Rock Movie". 
Por outro lado, fez muito sentido que ele tenha deslumbrado tal possibilidade para dirigir tal história, visto que o fenômeno da "Beatlemania", ou seja, a profunda reação fanática provocada por fãs dos Beatles, já existia há anos na Inglaterra e mantinha-se devidamente viralizada ao redor do planeta inteiro, e exatamente por isso, Watkins apostou forte em uma linha de raciocínio a usar o Rock como um fator de manipulação óbvia para que forças obscurantistas pudessem exercer o controle da população.

Nesses termos, a rigor, a crítica tratou a obra como mais uma manifestação política da parte de Peter Watkins, e dessa forma, o filme foi relegado a uma posição obscurecida e assim ficou por um longo período no imaginário Rocker em geral. Contudo, com o passar dos anos, a aura desse filme só cresceu, para torná-lo uma peça cultuada entre os cinéfilos, Rockers, e garimpeiros da contracultura sessentista em geral. 


A história apresenta  um conceito, certamente pesado, e isso faz desse filme uma produção densa, difícil para digerir-se. Não significa, no entanto, que não tenha os seus momentos de beleza, principalmente nos números musicais, que são ótimos. 

Outro dado muito interessante, Watkins não escreveu a história, que foi criada e roteirizada por Norman Bogner, mas para dirigi-la, recorreu a um documentário que o impressionara como uma inspiração. Tratou-se  de "Lonely Boy", lançado em 1962, ao estilo "Cinema Verité" (uma escola do documentarismo que filma de uma maneira a parecer um filme de ficção, mas a deixar claro que narra sobre fatos reais), a retratar o fenômeno da popularização em massa do cantor Pop, Paul Anka. Watkins chegou a afirmar que estudou essa peça, para buscar elementos que o ajudasse a compor "Privilege" de uma maneira mais realista possível, para parecer algo mais assustador, no sentido mais obscuro da teoria da conspiração.
Sobre a história em si, trata-se da saga vivida por Steven Shorter (interpretado pelo cantor/ator, Paul Jones), que é um cantor Pop. A sua voz, seu carisma e sua expressiva liderança subliminar, hipnotiza a juventude. Garotas sonham com ele, gritam e descabelam-se à simples menção de seu nome.
Qualquer semelhança com a Beatlemania em voga à época da produção de "Privilege", evidentemente não foi mera coincidência.  

Envolto sob um maquiavélico plano secreto de manipulação por parte do governo britânico, Steven protagoniza uma falsa conversão à Igreja (aparentemente fica dúbio se tratou-se claramente da Igreja Anglicana ou sobre outras denominações com viés protestante). 

Em outro aspecto, é inevitável não se pensar na obra: "1984", de George Orwell, e seu conceito sobre o domínio e vigilância total por parte de um poder centralizado e que oprime pela massificação hipnótica.

Em cenas espetaculares que lembram muito o documentário clássico de Leni Riefenstahl, "Triumph des Willens" ("O Triunfo da Vontade", este usado como propaganda do Nazismo nos anos trinta), evoca-se sentimentos nacionalistas, a misturar-se com o orgulho britânico e o movimento "Mod", em doses cavalares, mas tudo tratado como uma fantasia, naturalmente.

Dentro dessa dinâmica, Steven é manipulado por seus algozes a incentivar a população a adotar hábitos que interessam ao sistema, e dada a sua idolatria por parte da juventude, tais ações são prontamente atendidas pela massa, vide a questão do consumo de maçãs, a desnudar a ideia do controle dessas autoridades para tudo e para todos, visto que não foi por uma questão da saúde pública que as autoridades insistiram tanto para que as pessoas comessem tal fruta em quantidades enormes.

Chega-se aos píncaros da loucura, quando Steven é propagado como um líder espiritual, a aumentar ainda mais a hipnose que exerce sobre o povo. Em um evento grandiloquente. Steven sobe ao palco com vestimenta ritualística, assim como os músicos da sua banda. De fato, parece bastante com os documentários de Leni Riefenstahl a retratar os comícios nazistas realizados nos anos trinta do século passado e a evocar valores teutônicos ancestrais e até a mitologia. 

E o auge da história ocorre quando Steven Shorter rebela-se contra a manipulação secreta, quando em determinado evento público, revela o seu descontentamento e ódio ao sistema, para causar um grande tumulto e comoção.As autoridades simplesmente o tiram de cena e anunciam que a sua música não será mais difundida na Inglaterra e que o povo o esqueça o quanto antes, pois a nação haveria por ser feliz sem a sua presença, doravante. Ou seja, o completo descarte do agente que não interessou mais ao sistema, o que em via de regra, não é nada surpreendente na vida real.

Em suma, o filme usa o Rock e a idolatria para a reflexão sobre o poder manipulador do sistema, a envolver a completa ausência de uma esperança de romper-se com tal círculo vicioso. É amargo portanto, enquanto mensagem subliminar, certamente.

E os pontos positivos, inexistem? Claro que o filme contém os seus aspectos positivos. O ator, Paul Jones, por ser cantor Pop na vida real, defendeu bem os números musicais. A canção, "I've Been a Bad, bad Boy", entrou na parada de sucessos inglesa, com bom desempenho. Ao considerar-se a concorrência fortíssima na Inglaterra em 1967, foi dessa forma algo notável. "Free me" também alcançou um relativo sucesso fora do filme. Outras canções interessantes apresentadas no filme: "It's Overotherness Time", "Privilege", "Stephen" e "Vanessa". Nem todas as canções foram cantadas por Paul Jones. E destaca-se nesse sentido, a inclusão de dois temas com teor religioso, casos de "Jerusalem" e "Onward Christian Soldiers", estas, cantadas por George Beans que interpretou um membro da banda de Stephenm "The Runner Beans".
Outro trunfo da película, é a presença da belíssima atriz, Jean Shrimpton (como Vanessa Ritchie, uma artista plástica que foi contratada para pintar a imagem de Steven Shorter). Jean, na vida real, era o rosto mais famoso da Inglaterra, e um dos mais da Europa, (ao lado de Twiggy), nessa ocasião. Modelo famosíssima e desbravadora de costumes, foi um ícone da "Swinging London" que explodia sob um caleidoscópio de cores esfuziantes nessa ocasião.  

Já em relação à Paul Jones este era cantor de ofício e dos bons. Muitas pessoas não sabem, mas ele foi convidado para ser o vocalista de uma banda que os então jovens, Keith Richards e Brian Jones estavam a formar em Londres, no início dos anos sessenta. Com a sua recusa, seduzido por outros projetos, os dois jovens guitarristas chamaram então a segunda opção no caderno de anotações, um certo, Mick Jagger...

Tempos depois, Paul Jones fez boa figura como vocalista do ótimo grupo, "Manfred Man", mas preferiu seguir uma carreira solo, doravante, além de várias participações como convidado em discos de outros artistas, até tornar-se ator, onde construiu uma boa carreira, também. E engraçado, ele não foi a primeira opção do diretor, Peter Watkins para o papel. Cogitou-se primeiramente a contratação do também cantor, Gary Glitter. Com a recusa desse artista, Paul Jones foi o "plano B" e creio que atuou bem, pois de fato ele possuía uma veia dramatúrgica, além de ser um bom cantor de ofício.

"Privilege" é um bom filme no cômputo geral, que embora use um conceito pesado e de certa forma perigoso ao aludir à política manipuladora, tanto governamental quanto da parte das organizações religiosas, é também um triunfo da cultura Pop dos anos sessenta, se analisado de uma forma mais ampla.
Outros atores que participaram do filme: Mark London (como Alvin Kirsch), William Job (como Andrew Butler), Max Bacon (como Julie Jordan), Jeremy Child (como Martin Crossley), James Cossins (como o professor Tathan), Frederick Danner (como Marcus Hooper), Victor Henry (como Freddie "K"), Arthur Pentelow (como Leo Stanley), Michael Barrington (como o Bispo de Essex), Michael Graham (como Timothy Arbutt), Doreen Mantle (como Miss Crawford), Malcolm Rogers (como o reverendo, Jeremy Tate), Steve Kirby (como Squit) e outros.

Escrito por Norman Bogner. Produção de John Heyman e direção de Peter Watkins. Foi lançado em fevereiro de 1967.

Infelizmente o filme teve desempenho muito modesto nas salas de cinema e na TV, as suas exibições foram poucas, para tornar essa peça obscura, por anos a fio. Até que fosse lançado em DVD, muitos anos depois. Inclusive, nessa edição em DVD, foram acrescentados dois curta-metragens do diretor, Peter Watkins, como extras e que não tem nada a ver com o filme, "Privilege", diretamente, mas são peças interessantes para quem quiser conhecer melhor a carreira desse artista. Algum tempo depois, saiu a versão em Blu-Ray, igualmente.

Na internet, receio que haja bastante dificuldade para achar-se uma cópia do integral desta obra. No YouTube, na atualidade de 2012, existe muitos fragmentos do filme, portanto, a dica é procurar em portais menores.


Resenha publicada inicialmente na Rádio / Blog do Juma, em 2012. Posteriormente, esta resenha foi revista e ampliada para fazer parte do livro: "Luz; Câmera & Rock'n' Roll", e encontra-se disponível para a leitura, através do seu volume I, a partir da página 319.

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