quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

A Intensidade de Cacilda Becker - Por Luiz Domingues

O Teatro paulista sempre revelou talentos que alcançaram o reconhecimento nacional. Seja pelos atores; autores; diretores ou técnicos, já observamos diversas vezes esse fenômeno de combustão natural, capaz de manter a chama da dramaturgia sempre acesa na terra dos bandeirantes. E um exemplo dessa tradição reveladora de talentos natos, ocorreu na simpática cidade de Pirassununga, no norte do estado de São Paulo, quando em 6 de abril de 1921, nasceu uma menina chamada : Cacilda Becker Yáconis, filha de imigrantes italianos, colônia de presença marcante por todo o interior paulista.
Em meio a um turbilhão familiar atípico para aquela época, os pais de Cacilda e de suas duas irmãs (uma delas, Cleyde Yáconis, que também tornar-se-ia uma importante e renomada atriz no futuro), separaram-se, ao motivar a mudança da família para a cidade de litorânea de Santos. Dessa forma, as irmãs Becker Yáconis cresceram e estudaram em Santos, onde Cacilda conheceu nos círculos boêmios e intelectuais daquela cidade praiana, a dramaturgia que encantou-lhe.
Ao estudar teatro, logo inseriu-se em montagens amadoras e chamou a atenção pela expressiva capacidade interpretativa, onde desde cedo mostrara uma entrega fora do comum aos personagens, ao despertar a atenção de produtores teatrais litorâneos e rapidamente a precipitar com que os boatos subissem a serra, literalmente, em direção à capital paulista.
A sua primeira grande oportunidade ocorreu logo nos primeiros momentos do histórico TBC, em São Paulo. Com a recusa da atriz, Nydia Lícia, em protagonizar o espetáculo : "A Mulher do Próximo", de Abilio Pereira de Almeida, Cacilda assumiu, e dessa forma, iniciou-se aí uma trajetória fulminante de sucesso, de uma maneira irreversível. Sucedeu-se daí em diante, diversas montagens, com Cacilda a emprestar a sua interpretação a diversos personagens clássicos da dramaturgia nacional e internacional.

Em um momento de extremo brilho, Cacilda atuou por exemplo, em : "Pega Fogo", texto do autor francês, Jules Renard. Ao interpretar um menino, Cacilda encantou o público e a crítica de tal forma, que em uma viagem à França, impressionou o crítico, Michel Simon, que disse textualmente, que nenhum outro ator conseguiria interpretar o menino daquela forma, ao tornar o semblante de Cacilda, a marca registrada e insubstituível do personagem.
E particularmente, mesmo que eu não tenha assistido tal atuação de Cacilda, obviamente por nem estar nascido nessa época, posso imaginar que tenha superado os seus pares de outras montagens e até o ator, Robert Lynen, que o interpretou na versão clássica do cinema (oriunda de 1932 sob o título original em francês : "Poil de Carotte"), sob direção de Julien Duvivier (que aliás, recomendo, pois considero um ótimo filme). E por falar em cinema, é realmente digno de nota, que Cacilda não foi aproveitada como deveria ter sido, com todo o talento que possuía. A rigor, ela só fez um filme, uma bela produção da Cia. Cinematográfica Vera Cruz, denominado : "Floradas na Serra", lançado em 1954.
Por tratar-se de uma história ambientada em Campos do Jordão, no interior paulista e sobretudo ao revelar-se como um drama, ao envolver pessoas que estavam convalescentes, acometidas de tuberculose. Tirante esse filme citado acima, ela teve uma segunda atuação, mas que passou obscurecida, no filme : "Luz dos Meus Olhos", de 1947.
E assim colocou-se a construir a sua carreira ao interpretar o texto de autores do calibre de : Luigi Pirandello; Sófocles; Gil Vicente; Nelson Rodrigues; Eugene O'Neil; Dürrenmatt; Tennessee Williams; Samuel Beckett etc. Em uma outra atuação marcante, interpretou a corrosiva, Martha, protagonista da impressionante peça : "Quem tem medo de Virginia Woolf" ? Segundo a própria Cacilda, tornou-se comum nessa montagem, as pessoas aproximar-se do palco ao final de cada sessão do espetáculo para insultá-la, ao chamá-la de bêbada; louca; devassa e outros adjetivos ruins, tamanha a emoção negativa que Cacilda conseguia exprimir na interpretação da personagem.

É muito famosa a crítica escrita por Décio de Almeida Prado, sobre essa atuação : "A prolongada sessão de terapia pela bebida, pela flagelação e autoflagelação que é "Quem Tem Medo de Virgínia Woolf " (?), deu-lhe ensejo para uma de suas maiores criações. À medida que a sua voz e a sua dicção se tornavam pastosas, que as insinuações sexuais, deliberadamente vulgares, se explicitavam, aumentava a alucinante fusão estabelecida entre intérprete e personagem".
Nos anos sessenta, quando o regime governamental endureceu no Brasil, Cacilda foi uma das mais atuantes vozes no meio artístico a protestar e denunciar as arbitrariedades cometidas pelos abusos.
Por conta disso, foi demitida da Rede Bandeirantes de Televisão, claramente vítima de pressões políticas que a emissora absorveu. Na TV Bandeirantes, Cacilda protagonizava um interessante teleteatro, com o nome : "Teatro Cacilda Becker", a conter textos surpreendentes por tratar-se do veículo da TV, ao atuar ao lado de atores como : Jairo Arco e Flexa; Xandó Batista; Homero Kossac, entre outros.  E nessa mesma época (por volta de 1968), o espetáculo : "Feira Paulista de Opinião", sofreu setenta e um cortes da censura, para torná-lo impraticável em ser encenado.
Em maio de 1969, Cacilda estava a encenar, "Esperando Godot", texto clássico de Samuel Beckett, quando sentiu-se mal no palco. Foi um derrame cerebral que ela sofreu.
Desesperado, o seu marido (o ator, Walmor Chagas), levou-a para o hospital, ainda a trajar o figurino da personagem. Ela entrou em coma, não resistiu e veio a falecer em 14 de junho de 1969.
É óbvio que abriu-se uma lacuna gigantesca na dramaturgia paulista e brasileira, com o seu desaparecimento. Cacilda Becker entrou para a história, como uma das maiores atrizes de todos os tempos.
Na ocasião de seu falecimento, o poeta, Carlos Drummond de Andrade, expressou as suas condolências com um poema dedicado à ela:


"A morte emendou a gramática. Morreram Cacilda Becker. Não era uma só. Era tantas.

Professorinha pobre de Pirassununga, Cleópatra e Antigona, Maria Stuart, Mary Tyrone, Marta de Albee, Margarida Gauthier e Alma Winemiller. Hannah Jelkes a solteira. A velha senhora Clara Zahanassian. Adorável Júlia.

Outras muitas, modernas e futuras
irreveladas. Era também um garoto descarinhado e astuto: Pinga-Fogo. E um mendigo esperando eternamente Godot. Era principalmente a voz de martelo sensível martelando e doendo e descascando a casca podre da vida para mostrar o miolo da sombra
a verdade de cada um nos mitos cênicos. Era uma pessoa e era um teatro. Morrem mil Cacildas em Cacilda".
Matéria publicada inicialmente no Site / Blog Orra Meu e republicada posteriormente no Blog Pedro da Veiga, ambas em 2012

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