segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Livro : O Mirante do Mundo - Por Luiz Domingues


Eu sou fã da escola de cinema "noir" norteamericana, desde a tenra infância, pelo fato da grade de cinema exibida na TV, durante os anos sessenta, época em que fui criança, ter sido pródiga em exibir clássicos dos anos trinta; quarenta e cinquenta. Evidentemente que eu gostava de outros estilos, mas esse clássico estilo policial,  agrada-me muito, portanto, desde os anos sessenta.

E por falar de tais filmes, em sua maioria, os roteiros eram predominantemente adaptados de romances policiais, gênero literário muito apreciado na América do Norte, principalmente. Quando eu comprei o meu exemplar do livro : "O Mirante do Mundo", antes mesmo de ler as suas "orelhas", já tive a melhor das impressões, ao verificar que a ilustração da capa remetia a uma paisagem muito instigante, que era alusiva aos cenários de velhos filmes "noir", dos anos quarenta e cinquenta, principalmente.

A história, muito bem engendrada, tal como um roteiro do estilo, conta a história de um ex-combatente da II Guerra Mundial, Jeff Monthel, que de volta à América, vê-se desolado com o fato de saber que sua mãe falecera, e ela era a sua única motivação para continuar a vida, no pós-guerra. Desiludido pela falta de perspectivas, sai a perambular como um errante, sem destino, e assim a assemelhar-se a um personagem pré-Beatnick.

Um dia, ele teve um ataque epilético na rua, e socorrido por estranhos, foi internado em uma clínica psiquiátrica. É aí que a trama torna-se permeada pelo fator enigmático, pois surge a figura de Diana, uma bela moça que o procura, ao visar auxiliar-lhe.

Contudo, o fato, é que Diana não o conhecia pessoalmente até então, mas demonstra saber tudo sobre a sua vida, de forma que deixa Jeff atordoado com tal situação inusitada. A alegação da linda jovem, é de que as suas respectivas mães teriam sido amigas em um passado não muito bem explicado, e dessa forma, tratar-se-ia de um desejo de sua mãe, que Diana auxiliasse o filho de sua grande amiga, ao ofertar-lhe perspectivas de vida.

Jeff aceita a ajuda, mas fica muito ressabiado com tal argumentação, por julgá-la inconsistente em uma primeira avaliação de sua parte. Nesse instante, Jeff ainda mostra-se brutalizado pelos anos de horror vividos no front da guerra, somados à desilusão pela perda de sua mãe, além da sua internação psiquiátrica, certamente.

Entretanto ele desarma as suas reservas paulatinamente, à medida que a doçura de Diana passa a vencer a sua resistência mais recôndita. Porém, ele ainda não estava devidamente convencido de que a ajuda oferecida, tivesse apenas uma motivação singela, por Diana alegada. Então, o grande salto na história é dado, quando ambos vão parar em uma pequena cidade interiorana, e instalam-se em uma casa erguida no topo de uma montanha.

Figura de linguagem muito norteamericana, e típica dos filmes Hollywoodeanos clássicos do passado, trata-se da sensação de ser "O Rei da Montanha", ou "King of the Hill", na expressão idiomática típica daquela cultura. Mas o autor, teve uma segunda intenção, além de evocar a cultura norteamericana, pois "O Mirante do Mundo", é a metáfora-chave do personagem, Jeff Monthel.

Ao viver nessa habitação sobre a montanha, o casal Jeff e Diana interage com a pequena e preconceituosa população da minúscula cidade, que os hostilizou, ao tomar como base, fatos do passado perpetrados pelas respectivas progenitoras de ambos. Surge então, a figura do Reverendo Charles, que torna-se um apoio importante para Jeff e Diana.

Contudo, uma série de sinais, faz com que Jeff desconfie cada vez mais de Diana, e nesses arroubos paranoicos, ele passa a crer que toda essa bondade da moça, não passa de uma trama diabólica para efetuar um plano de vingança, para eliminá-lo. Os signos cinematográficos usados pelo autor, nesse ponto do livro, são intensos. A sua vasta cultura cinéfila fez-se valer como autor literário, sem dúvida, e nesse sentido, a capacidade de prender a atenção do leitor, tem o peso de uma mão pesada de diretor de cinema.

O final é surpreendente, e claro que não cometerei o deslize em revelá-lo, mas permito-me uma dica : a chave de tal desfecho, está nas primeiras páginas da obra, onde geralmente o leitor é desatento, e considera tais informações preliminares, irrelevantes para a ampla compreensão do livro...

Conheci o autor de "O Mirante do Mundo", Eric Francato, através de uma rede social, em 2010 (o extinto, Orkut), e daí, tornamo-nos amigos por interagirmos costumeiramente em comunidades relacionadas ao cinema clássico norteamericano, e também sobre as séries de TV, vintage. Sabia que ele escrevia roteiros para cinema; romances e crônicas, mas nunca havia lido nada de suas criações, a não ser as suas intervenções em redes sociais e no seu bom Blog, "Críticas de Filmes".

 http://cineconhecimento.blogspot.com.br/



Fiquei muito contente quando Eric comunicou-me que o seu primeiro livro estava por ser lançado por uma boa editora, e mais ainda, quando convidou-me para a tarde de autógrafos, realizada em um teatro, na zona leste de São Paulo, em uma tarde de abril de 2013. Como eu já afirmei, a primeira impressão que tive, visual, foi a melhor possível, pois a ilustração da capa arrebatou-me pela beleza da ilustração, e também por remeter-me a uma imagem muito cinematográfica. Parabenizo a ilustradora, Karolyna Papoy, que soube exprimir com rara felicidade, a ideia que o Eric Francato deve ter sugerido-lhe, baseado em sua cultura cinematográfica.

E por extensão, está de parabéns a editora Giostri, que caprichou na qualidade gráfica da edição, e sobretudo por apostar em novos talentos, conforme pude verificar não só pelo prestígio oferecido ao jovem Francato, mas pelo release que li, que veio na bela embalagem do livro, onde deixa clara a sua política editorial, recheada com novos e promissores autores, de diversos gêneros literários.

Que venham outros livros, pois Eric Francato tem somente vinte e poucos anos, e vai construir uma carreira longa, não tenho dúvida. "O Mirante do Mundo", é um romance com estilo de roteiro de cinema.

Se estivéssemos nos anos quarenta, e esse script chegasse às mãos de um Robert Siodmak, ou Raoul Walsh, entre outros, tornar-se-ia um belo filme, facilmente.


Fico a imaginar a atriz, Veronica Lake a interpretar a personagem,  "Diana"; Dana Andrews, a defender o personagem, "Jeff Monthel"; e Spencer Tracy, a atuar como o "Reverendo Charles"...
E que grande filme, culminaria em ser !

domingo, 18 de agosto de 2013

Livro : O Inventário de Lides - Por Luiz Domingues

A trajetória de uma vida, esmiuçada através de uma série de correspondências, pode dar margem à várias interpretações,
conforme cada leitor as enxergar. A questão do contexto em que tais cartas foram escritas; seja pelo fator, época, seja pela circunstância geográfica, influencia de uma maneira geral, certamente.


As entrelinhas dessas missivas, são inúmeras : o que a pessoa quis realmente expressar em determinado momento; as suas motivações etc. Contudo, a carga emocional envolvida, quando essa comunicação é feita entre entes queridos, assume uma proporção ainda maior, pois lida-se daí, com questões emocionais complexas, oriundas das mais remotas conexões do DNA humano.

Em "O Inventário de Lides", a escritora, Rosa Maria Custodio, esmiuçou décadas de correspondência entre ela, e a sua própria mãe, a senhora, Lides Anna Dorigon Custódio. Ao ultrapassar qualquer barreira de uma obra meramente nostálgica, e sob o interesse restrito à sua própria família, como em princípio, um livro dessa natureza pudesse fazer um leitor desatento supor, Rosa Maria Custodio soube tecer uma teia envolvente, onde através dessas cartas, muitas revelações interessantes foram descritas.

No prefácio, há uma didática explicação da autora, sobre como organizou o material que encontrara na residência de sua mãe, então recém falecida, no ano de 2001. Com a ajuda de uma de suas irmãs, Rosa percebeu que aquele calhamaço a conter cartas guardadas, mostrava-se como um um tesouro, e que deveria vir à tona, como um relato vivo. Daí em diante, sim, Rosa Maria seguiu a ordem cronológica, e através de um preâmbulo, mostrou a origem de sua família, no Rio Grande do Sul, ao constituir-se de descendentes de imigrantes italianos, que aqui chegaram ao final do século XIX.

Nesse início, um quadro rápido dessa família ítalo-brasileira, é mostrado, para trazer a reboque, ricas informações sobre tal período da história, e como a imigração italiana foi importante naquele estado. A narrativa evolui até o casamento de Lides, e a formação da nova família, de onde Rosa Maria, e seus irmãos, foram os frutos naturais. A infância e adolescência de Rosa Maria são contadas, todavia com o devido cuidado em situar sempre o ponto de vista que mostra sua mãe, Dona Lides, como uma mulher sacrificada, como uma dona de casa à beira da exaustão, ao deparar-se com a obrigação de criar tantos filhos, em meio às dificuldades sócio-financeiras da família, e principalmente, em face da presença de um marido não muito participativo, e compreensivo.


Os anos difíceis, vividos na remota cidade de Campo Belo do Sul, em Santa Catarina, onde o pai arrumara uma colocação para trabalhar, são contados, até a volta à Farroupilha, no Rio Grande do Sul, terra de origem da família.


Rosa Maria cresceu tímida, sem muitas possibilidades para poder  socializar-se, porque ainda na tenra infância, precisara ajudar a mãe nas tarefas domésticas, e sobretudo na criação dos irmãos menores. Somente ao final da adolescência, Rosa Maria buscou a sua independência, e em um ato de ousadia raro para a época, perante os padrões conservadores da família, inscreveu-se em um curso de preparação da Varig (a então maior companhia de aviação do Brasil), para a formação de comissárias de bordo.

Curso difícil, e que demandava pré-requisitos, representou esforço; coragem e muita força de vontade por parte dela. Todavia, Rosa Maria já tinha uma determinação interna, bem fundamentada. Não queria repetir o padrão de sua mãe, ao abdicar de seus sonhos, para dedicar-se exclusivamente à criação de filhos, e manutenção de uma casa. Não tratava-se de uma rebeldia, absolutamente. Apenas ela ambicionou ser independente, e assim possuir a sua solidez financeira; quiçá poder absorver novas culturas, e ajudar a sua família, sem dúvida, principalmente a sua mãe, Dona Lides, que nessa altura, já demonstrava um cansaço muito grande, gerado pela vida sofrida.


Rosa Maria conseguiu a admissão no curso, e daí em diante, é que as cartas trocadas entre ela e sua mãe, tomam o contorno mais interessante da obra, pois revelam diferentes matizes na relação entre mãe e filha.



Rosa teve que ir morar no Rio de Janeiro, como base de sua nova profissão, e dessa forma, mostra-nos um painel claro de seu crescimento como pessoa, de uma forma vertiginosa, através de um verdadeiro paralelo com a sua carreira, como aeromoça. O contraste das cartas, é o descobrir a cada correspondência, o sofrimento e a amargura de sua mãe, acumulados ao longo de décadas.

Por ajudar financeiramente, Rosa Maria percebeu que isso só não bastava, e nesse sentido, ela fez tudo para suprir emocionalmente a sua mãe e irmãos menores. O que mais impressiona na narrativa, contudo, não são esses detalhes, mas sim, a carga emocional decorrente das revelações de ambas as partes, com mãe e filha a conhecer-se, de fato, através da correspondência trocada, ao longo de muitos anos.

Ao ler o livro, muitas vezes lembrei-me do filme : "Nunca te vi, sempre te amei" ("84 Charing Cross Road", no original em inglês), onde um casal apaixona-se à distância (ela, uma escritora norteamericana, e ele, um dono de livraria, britânico), pela troca de correspondências, mas apenas conseguem conhecerem-se pessoalmente, muitos anos depois, já envelhecidos. Nesse caso do filme, tratou-se de uma relação amorosa, homem / mulher, mas a semelhança que enxerguei, foi na nuance dos personagens conhecerem-se profundamente, através dessa troca de missivas.

Portanto, nesse aspecto, acho que Rosa Maria e Lides culminaram em conhecerem-se mesmo, como mãe e filha, quando curiosamente deixaram de viver sob o mesmo teto, e nesse caso, a distância as aproximou, ainda que isso seja paradoxal, em princípio.

Muito estudiosa, Rosa Maria nunca acomodou-se na carreira como comissária de bordo. Pelo contrário, por aproveitar o fato de possuir tal oportunidade para conhecer várias culturas, estudou muito, e quando aposentou-se da aviação, tornou-se jornalista; escritora; poetisa; psicoterapeuta, e com graduação também em Estudos Sociais; Literatura Brasileira; pós-graduação em Língua Portuguesa, e psicoterapia analítica de grupo. Hoje em dia, integra a API (Associação Paulista de Imprensa); MPN (Movimento Poético Nacional), e ocupa a cadeira n° 30 da ACL (associação Cristã de Letras), além da BIOgraph (associação Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica), e do MMV (Movimento Mulheres de Verdade).

Creio que a autora usou todas as ferramentas das suas múltiplas graduações, para escrever o livro, "O Inventário de Lides", e tal bagagem abrangente, conferiu-lhe a oportunidade em fazer de tal obra, um objeto de interesse do leitor em geral, muito além de seus entes queridos, e que amaram a saudosa, Dona Lides. Por tal feito extraordinário, eu a parabenizo por tal realização !

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Cidade Dormitório - Por Luiz Domingues

Vivemos tempos difíceis no quesito da mobilidade urbana. Com as cidades cada vez mais inchadas, o trânsito caótico piora, para transformar a rotina dos trabalhadores, em um inferno cotidiano. Ações são discutidas por técnicos para melhorar o deslocamento das pessoas nas cidades, mas a complexidade de tal engenharia de trânsito, torna-se muito difícil em ser equalizada, quando na verdade, a realidade mostra-nos que na cidade de São Paulo, por exemplo, cerca de oitocentos novos carros são emplacados pelo Detran, diariamente...

Recentemente, eu li uma estatística a dar conta de que uma cidade do porte de Araçatuba (esta mantém-se na faixa de trezentos mil habitantes), desloca-se diariamente para São Paulo, que vem de cidades vizinhas, para trabalhar na capital. No Estado do Rio de Janeiro, é clássico o exemplo da cidade de Duque de Caxias / RJ, onde quase 90 % de sua população, precisa trabalhar na cidade do Rio, por falta de melhores opções de emprego.

Como se não bastassem todos os problemas, a questão política é um fator desanimador para quem sonha com dias melhores no trânsito. Interesses obscuros fazem com que as ações dos governantes não afunilem-se em torno de uma meta, e isso apenas gera mais frustração. Claro que o ideal é que cidades de mais de quinhentos mil habitantes contem com uma rede de metrô eficiente. Entretanto, o que observamos é uma ação de tartarugas para construir o metrô em poucas cidades e para piorar, de uma forma totalmente insatisfatória. Corredor exclusivo para ônibus, é um outro exemplo de necessidade para lá de urgente, com a possibilidade desses coletivos circular mais rápido, ao deslocar-se um número maior de pessoas, e assim retirar mais carros particulares das ruas.

Integração com trens de subúrbio e incentivo ao uso de bicicletas, também são importantes, com a ressalva de que no caso das bicicletas, a criação de ciclovias seguras, faz-se mister. Repensar a questão tributária dos taxistas, ao conceder-lhes melhores oportunidade em minimizar custos e por conseguinte, trabalhar com uma tarifa reduzida ao passageiro, é outra medida importante. Nesse caso, até a criação de uma tarifa especial de combustíveis, seria bem vinda e assim com a perspectiva do Pré-Sal, por quê não ? Tudo isso é discutido em profusão por vários setores da sociedade civil, ainda que o governo muitas vezes desconverse. No entanto, existe um outro elemento nessa equação, que seria vital para desatar esse nó cruel que atormenta milhões de pessoas : a questão da cidade dormitório.

A vida é cara e para poder arcar com a despesa de moradia, muitas vezes as pessoas precisam submeter-se a morar muito longe de seus locais de trabalho. Qual a lógica para morar-se em um determinado bairro e ter que deslocar-se com enorme sacrifício, para trabalhar em um outro bairro longínquo ? E o caso de pessoas que trabalham diariamente em outras cidades ?
Em uma estrutura social caótica como a do Brasil, tudo parece responder aos fatores aleatórios. A pessoa mora longe, porque não tem como manter-se em um bairro mais próximo do centro de sua cidade, e a questão do emprego é vista como um eterno "pegar ou largar", sem oferecer-lhe uma opção de escolha.

Dessa forma, criou-se essa caótica forma de deslocamentos, onde o que deveria ser o padrão, é tido como um golpe de sorte, para poucos e equivalente a tirar a sorte grande de um jogo de loteria. Trabalhar e morar no mesmo bairro, passou a ser um privilégio para afortunados, a caracterizar um mero fruto aleatório e produzido pelo fator da sorte. Pois os governantes deveriam consultar os urbanistas com maior atenção e repensar os seus conceitos. A geração de empregos a privilegiar trabalhadores do mesmo bairro, deveria ser plano de governo, como prioridade. Deveria ser tratada como meta de incentivo às indústrias; comércio; rede de serviços e outros empreendedores, no sentido de priorizar-se a contratação de profissionais do mesmo bairro de suas sedes. 

Se muitas pessoas passarem a trabalhar perto de suas respectivas residências, não será apenas o trânsito que irá melhorar.  É óbvio o benefício humano, com o aumento significativo da qualidade de vida. Ao tirar as pessoas do sufoco, em enfrentar a famigerada "hora do rush", sobra tempo para o lazer; cultura; tempo para viver com as suas famílias; prática de esportes etc. 

Não consigo imaginar o caos do trânsito melhorar, sem que os governantes trabalhem todas essas ações conjuntamente. Todavia, uma das mais importantes sem dúvida, é acabar com esse conceito de "cidade dormitório", onde o cidadão é massacrado por uma rotina de deslocamentos que antecipa-lhe a velhice em muitos anos, sob uma subtração desumana.

Matéria publicada inicialmente no Blog Planet Polêmica, em 2013.

sábado, 10 de agosto de 2013

14 Hour Technicolor Dream - Por Luiz Domingues



A Era psicodélica avançara sobre o planeta, desde 1966, mais perceptivelmente a observar-se. Entretanto, sinais foram emitidos antes, principalmente em suas grandes matrizes, isto é : Estados Unidos da América e Europa. No caso da Europa, sem dúvida que foi na Inglaterra o seu maior centro irradiador.

Muito por conta da explosão do Rock, ainda que na Ilha, a bipolarização entre o movimento Mod e o Rock norteamericano, pudesse sugerir subdivisões irremediáveis, o fato é que, pelo contrário, só precipitou uma onda de euforia, que tornaria a capital britânica, Londres, em 1967, a chamada : "Swingin' London" do dito desbunde psicodélico. Há diferenças sutis entre a percepção da psicodelia britânica e a norteamericana, ainda que houvesse uma raiz comum, certamente. Se ficara óbvia a adesão de setores universitários interessados no viés político ou na profusão de estéticas artísticas & comportamentais no sentido avantgarde, no caso dos britânicos, a preocupação sociopolítica parecia mais centrada no avanço da segunda hipótese citada.

Nessa época, havia uma casa noturna que promovia shows de Rock de diversas bandas emergentes em Londres, chamada : "UFO". Nessa casa, mais que um espaço para divulgar o trabalho e brigar por um lugar ao sol no mercado da música, houve uma atmosfera que privilegiava bandas que experimentavam novos caminhos, além do Rock'n Roll tradicional.


Entretanto, o clube mantinha instalações tímidas para um evento desse porte, pois não tratar-se-ia de um simples show de Rock, ainda que privilegiado por conter ares de Festival e assim a  apresentar diversas bandas interessantes.

A ideia foi mesmo realizar um grande "happening", com intervenções; performances; instalações e muitas projeções de luzes, ao garantir a porção psicodélica ideal ao evento.

Surgiu então a ideia para usar-se um grande galpão, na verdade um hangar, chamado : Alexandra Palace, que entre os londrinos, é normalmente chamado de uma forma carinhosa. como : "Ally Pally". E dessa forma, em 29 de abril de 1967, o evento aconteceu, com o nome : "14 Hour Technicolor Dream", ao prometer ser uma experiência sensorial, sem precedentes, por unir o elemento Rock, às artes plásticas de vanguarda, mediante a atuação de poetas; projeções psicodélicas; dançarinos e performances teatrais. A lista inicial das bandas anunciadas, foi enorme, mas nem todas  apresentaram-se, contudo.


Nomes como Pretty Things; Soft Machine; John's Children; The Move; Graham Bond Organization; Savoy Brown; Champion Jack Dupree; Purple Gang; The Crazy World of Arthur Brown; Donovan; Alexis Korner; Tomorrow; The Cat, Denny Laine e muitos outros. O Mothers of Invention do guitarrista, Frank Zappa, estava agendado, mas de última hora, cancelou a sua participação.

O número performático do cantor, Arthur Brown, ao interpretar o seu sucesso, "Fire"(sempre a usar uma coroa incandescente à cabeça), foi um dos que mais marcou o happening, e foi muito citado entre as pessoas que lá estiveram presentes. E o Pink Floyd, culminou e ser a banda que mais beneficiou-se do evento, quando tornou-se uma lenda, a sua participação.


Ao viver um momento excepcional por conta de seu recém lançado LP de estreia, a banda do louquíssimo guitarrista, Syd Barrett, apresentou-se às cinco horas da manhã, quando o delírio já era enorme dentro do hangar.

Cerca de dez mil pessoas transitaram pelo evento e em sua maioria absoluta, a fazer uso de drogas alucinógenas, principalmente o LSD. Daí a experiência assemelhar-se aos "Acid Tests" que os hippies norteamericanos já promoviam na Califórnia.

Apesar de cansados, pois estavam a chegar de um show realizado na noite anterior, na Holanda, e por conta de uma logística conturbada ter chegado ao "Ally Pally", por volta das 3:00 horas da manhã, eis que a banda fez um show muito performático, pleno de experimentalismos psicodélicos, como era de sua praxe, principalmente nessa fase inicial de sua história, com Syd Barrett à guitarra.

Entre inúmeros artistas plásticos e performáticos presentes, estava a japonesa, Yoko Ono. Mesmo que nessa época ainda não fosse admitido publicamente, estava a namorar o Beatle, John Lennon, apesar deste ainda estar casado oficialmente com Cynthia Lennon.


Lennon foi certamente a maior celebridade presente no evento, ao despertar a atenção de jornalistas e do público em geral.



Uma das intervenções de Yoko Ono no evento, foi a performance da garota que deixa-se desnudar, com a participação de qualquer pessoa do público, disposta a cortar peças de seu vestuário, munidos de uma tesoura cedida pela artista. 

Essa performance silenciosa e muito impressionante pelo fator psicológico com a qual revestiu-se, já havia sido realizada em diversas outras oportunidades (existe até em vídeo oficial, com uma performance de Yoko, em 1965, em Nova York, chamado "Cut Piece"). Todavia, pelo caráter de multidão ali representada, mais o alto volume provocados pelos shows e projeções psicodélicas pelas paredes, não foi um ambiente propício para isso, e a garota que submeteu-se à experiência, passou um certo sufoco, com aquele bando de doidos alucinados e uma enorme tesoura às mãos...

Há relatos de que houve projeções de filmes de arte em vários momentos. Películas do cineasta, Kenneth Anger, por exemplo.


Nem tudo foi perfeito, todavia. A reclamação sobre a acústica do local, foi geral e convenhamos, o fato de ser um enorme hangar, com o teto muito alto, é claro que não favoreceu a equalização ideal para shows musicais.



Um palco menor foi montado para performances de poetas e danças. Entre inúmeros grupos de dança, um chamado : "The Tribe of the Mushroom", ilustra pelo seu próprio título, o espírito do happening. Por muitos anos, circulou uma fita em formato VHS, entre colecionadores, a conter apenas a performance do Pink Floyd, todavia, a mostrar algumas cenas gerais do evento, principalmente a presença de John Lennon. 
Porém, felizmente, um DVD mais completo foi lançado em 2008, com muito mais material disponível e a contar com bons extras, onde depoimentos esclarecedores de quem lá esteve in loco, faz a diferença, como é o caso de Roger Waters e Nick Mason, baixo e bateria do Pink Floyd, por exemplo, além do guitarrista, Phil May, do Pretty Things, e algumas pessoas ligadas à produção de evento.

"14 Hour Technicolor Dream", entrou para a história da psicodelia, como um dos maiores eventos públicos e ilustrativos do espírito dos anos sessenta.




Matéria publicada inicialmente no Blog Limonada Hippie, em 2013, com republicação na Revista Gatos & Alfaces nº 2, em 2014.