quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Afonsinho, Bem Antes do Sócrates - Por Luiz Domingues



O jogador Sócrates, ídolo da torcida Corintiana (e com passagens por outros clubes e seleção brasileira, também), entrou para a história do futebol, como um raro exemplo de jogador a possuir nível universitário; bem articulado e com uma bagagem cultural milhas acima da média dos seus pares, geralmente formado por meninos pobres e oriundos de favelas; bairros pobres da periferia das grandes cidades ou de remotos rincões sertanejos. Portanto, é muito difícil ver um jogador de futebol que articule pensamentos com um grau de discernimento a conter teor político, o que fez de Sócrates, um raro exemplo no meio dos ditos "boleiros".
No entanto, que antes do "Doutor", um outro jogador teve comportamento semelhante, e em uma época onde o regime autoritário estava a viver uma fase de endurecimento total, portanto com o povo a observar a sua voz sufocada, e dessa forma, o impacto causado por suas ideias e atitudes, foi surpreendente pelo inusitado da situação inédita.

Tratou-se de Afonsinho, um jogador que atuou no futebol brasileiro entre os anos sessenta e setenta, ao chamar a atenção pelo seu bom nível técnico, em termos de futebol propriamente dito, mas também pelo seu posicionamento forte, e muito incomum para a sua época.
Nascido, Afonso Celso Garcia Reis, na cidade de Marília, interior de São Paulo, tal jogador começou a sua carreira no glorioso XV de Novembro de Jaú, cidade vizinha, em 1962. Bom meio campista, logo chamou a atenção dos grandes clubes, e sob um vacilo dos grandes clubes de São Paulo, foi contratado pelo Botafogo do Rio de Janeiro.
Ao atuar no time da estrela solitária,  jogouo com grandes craques que formavam esse time na época, tais como : Gerson; Paulo Cesar "Caju" e Jairzinho, todos com nível técnico a atuar na seleção brasileira, e assim Afonsinho jogou em alto nível, ao tornar-se bicampeão carioca em 1967 e 1968 e campeão brasileiro em 1968.
Contudo, Afonsinho não conformava-se com as leis que regiam o futebol profissional naquela época. E ele teve razão, pois os jogadores eram considerados mercadorias dos clubes, através de um dispositivo ridículo, denominado : "passe".
Nessa dinâmica, o jogador era um escravo (literalmente) do clube, e este o "vendia" ou "emprestava" a outro clube, em negociatas que na prática, era uma herança do sistema escravagista. Ousado, em uma época onde a mordaça governamental oprimia o povo de forma violenta, Afonsinho começou a reclamar publicamente dessa infame forma para tratar-se todo jogador de futebol profissional.
Isso foi muito perigoso, e claro que setores do governo incomodou-se, pois um jogador de futebol que fugira ao padrão simplório das declarações prosaicas por eles proferidas através do rádio e TV, ao tocar em temas espinhosos, poderia causar tantos problemas quanto os artistas, principal alvo da preocupação dessas forças retrógradas.
O seu clube à época, o Botafogo, foi pressionado para coibir as declarações de Afonsinho, mas foi tarde demais, pois boa parte da imprensa enxergou nessa postura, um ato libertário e contra o regime, portanto, gostava e estimulava Afonsinho a não deixar  recrudescer em sua atitude. Curiosamente o Botafogo apresentou um novo regulamento interno e que obrigou os seus jogadores a manter a barba e cabelo bem aparados. No entanto, Afonsinho era barbudo e cabeludo, mais a parecer-se com um hippie.
Por recusar-se a cortar a sua barba e cabelo, Afonsinho ficou com a situação insustentável dentro do alvinegro carioca e foi para o Olaria, um clube pequeno do Rio. Tornara-se nítida a perseguição, pois com todo o respeito à simpática agremiação suburbana do Rio, o seu futebol era para time grande e não fazia sentido deixar o Botafogo, pelo ponto de vista técnico, para atuar no modesto, Olaria. Os governantes estavam a vigiá-lo com muita atenção. Documentos recentemente revelados, dão conta de que suspeitavam que Afonsinho teria relações com movimentos de luta armada e que nas excursões ao exterior, aproveitava os momentos de folga para visitar embaixadas de países comunistas. Gilberto Gil compôs uma música inspirada na luta de Afonsinho, chamada : "Meio do Campo", para irritar ainda mais certos agentes do governo.
Afonsinho iniciou então uma batalha jurídica muito corajosa, e conseguiu obter o passe livre, ao torná-lo um jogador de futebol independente, livre para negociar contratos com qualquer clube que desejasse contar com o seu futebol. Mesmo ainda pressionado, ele teve uma sobrevida no futebol, com passagens em outros clubes grandes, como o Santos (sim, jogou com Pelé; Edu; Clodoaldo e Carlos Alberto Torres, entre outros grandes jogadores daquele Santos, do início dos anos setenta); Fluminense e Flamengo, além de ter tido rápidas passagens pelo América de Minas e Madureira.
Em 1974, o cineasta, Oswaldo Caldeira, lançou um documentário chamado : "Passe Livre", onde narrou a trajetória de Afonsinho. Tal peça audiovisual já foi exibida muitas vezes no Canal Brasil, da TV a cabo. Afonsinho deixou o futebol e estudou medicina (mais uma coincidência com o Sócrates).
A sua principal reivindicação no futebol, foi a criação do passe livre, onde ele entendia que o jogador profissional era um trabalhador como outro qualquer, e tinha o direito de mudar de clube, ao considerar-se que poderia obter uma proposta de trabalho mais vantajosa. Claro, não a esmo, mas a obedecer prazos acordados, e assim dar prioridade de renovação e jamais abandonar um clube no meio de um campeonato, a não ser por falta de pagamentos, ou outra razão justificável.
O que tinha de absurdo em tal reivindicação ? Se a escravatura fora abolida em 1888, por quê os jogadores de futebol ainda viviam nesse regime, praticamente ? Porém, Afonsinho foi bastante perseguido e particularmente, eu lembro-me dessa fase, pois acompanhei a sua trajetória, desde o final dos anos sessenta.
Ele foi um bom jogador, talvez não um excepcional, mas sem dúvida a apresentar um nível para atuar em time grande, dotado de bastante habilidade e inteligência tática. E de certa forma, por sua posição firme, deu os primeiras passos para que a regulação da profissão fosse revista anos depois, ao extrair dos clubes, o poder medieval que eles mantinham anteriormente, ao fazer dos jogadores, meras mercadorias de carne e osso.
Todavia, ele deu azar em um aspecto : o Sócrates foi quem levou a fama...
Matéria publicada inicialmente no Site / Blog Orra Meu, em 2013

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