terça-feira, 17 de março de 2015

Cem Anos para Orgulhar-se, ou para Envergonhar-se ? - Por Luiz Domingues



Neste ano de 2015, completou-se cem anos do lançamento oficial de um longa metragem que entrou para a história do cinema : “The Birth of a Nation” (“O Nascimento de uma Nação”). Uma super produção para os padrões dos anos dez, do século passado, tal filme gerou números impressionantes; inovou tecnológica e esteticamente em inúmeros aspectos; apresentou atores e atrizes que fariam longa carreira posteriormente (tais como Lilian Gish; Mae Marsh; Donald Crisp, e Walter Long, entre outros tantos), além de solidificar a carreira do diretor, D.W. Griffith, por elevá-lo à condição de um mito, doravante.
Todavia, o filme foi além de tudo isso, e gerou muita controvérsia.
Isso porque a película tem como pano de fundo a Guerra de Secessão, portanto, um assunto que causa melindres entre os norteamericanos, até hoje.
Como se não bastasse isso, Griffith foi fundo na questão da segregação racial, e aí sim, o filme gerou uma polêmica incrível na época em que foi lançado. Em seu enredo, “The Birth of a Nation” mostra os acontecimentos através da ótica de duas famílias envolvidas com o conflito, diretamente, uma nortista, e a outra sulista.
Em meio às mazelas do Pós-Guerra, a questão racial torna-se explícita, quando cenas a mostrar homens negros a tentar estuprar mulheres brancas, causam revolta generalizada, e daí justifica-se a criação de uma entidade abominável, chamada, Ku Klux Klan.
No filme, tal instituição é tratada como uma organização “heroica”, por resguardar a segurança da sociedade ariana, e em contrapartida, retratar os negros como verdadeiras bestas demoníacas, e incontroláveis. Se tal visão chocou naquela época, imagine cem anos depois, com a consciência sociocultural que temos hoje em dia...
Em meio aos protestos veementes, e também demonstrações de apoio explícitas, o filme foi proibido em ser exibido em algumas cidades norteamericanas, na época. O fato, é que após o seu lançamento, a Ku Klux Klan ganhou força durante o governo de Thomas Woodrow Wilson. Ele mesmo, foi contraditório em relação ao filme, pois teria pronunciado-se chocado com o seu teor, mas ao mesmo tempo, era um defensor de ideias segregacionistas.
Houve até registro de morte, com um rapaz branco a matar um negro a sangue frio, logo após ter saído de uma sala de cinema, em Lafayette / Indiana, ou seja, o filme causou um furor e tanto, para acirrar ânimos. Como peça cinematográfica, é um filme histórico e revolucionário, não resta dúvida.
Inovou em muitos aspectos técnicos e estéticos. Por exemplo :


- Foi o primeiro longa-metragem da história, e na época, havia um temor enorme por isso, por conta dos produtores duvidar ser possível que as pessoas suportassem assistir uma película tão longa, em uma sala de cinema. Todavia, o sucesso retumbante provou o contrário, e abriu o caminho para o cinema formatar-se de outra maneira, doravante.
- Os atores negros, na verdade eram brancos maquiados, ou seja, a segregação começou no próprio set de filmagem, mas por outro lado, a questão foi : que ator negro aceitaria participar, em ao considerar-se o teor do enredo ?
- Griffith inovou tecnicamente, em muitos aspectos. Entre eles, a questão do close, uma novidade para o padrão da época. Também o uso excessivo de fumaça nas cenas de batalhas, para abrandar a violência, mas nesse quesito, convenhamos, o choque maior ficou por conta da retratação dos negros como bestas sexuais incontroláveis, uma afronta à humanidade, certamente.


- O valor do ingresso cobrado nas salas de cinema para assistir-se “The Birth of a Nation”, causou escândalo, pois o preço de U$ 2, foi considerado astronômico para a época. Mesmo assim, o sucesso estrondoso gerou uma renda inacreditável para Griffith, e quem mais associou-se nessa produção.


- Em Los Angeles, foi exibido com o título alternativo : “The Clansman” (aliás, trata-se do título do livro de onde Grifith,  baseou-se para produzir esse filme), e foi banido, sumariamente, a seguir.


Pelo seu mote, é muito controverso e abominável pela opção racista.
Griffith ganhou uma fortuna inimaginável para os padrões da época, que nem em seus mais loucos devaneios poderia conceber, ou seja : cerca de três milhões de dólares. Mas também ficou bastante atordoado moralmente, com a saraivada de críticas que o filme recebeu. A sua providência foi conceber em seu próximo filme, uma espécie de “desculpa”, ao tentar amenizar a sua imagem.
Em “Intolerance”, lançado em 1916, Griffith fez outro longa, desta feita ainda mais histriônico, com cenários megalomaníacos; centenas de figurantes em cena etc. Dividido em quatro histórias ambientadas em épocas muito distantes uma da outra (antiguidade da Babilônia; antiguidade judaica; renascença francesa, e uma história moderna (para 1916, é claro), ao enfocar luta de classes.
A sua intenção foi provar que os conflitos são normais desde o início da civilização, e o que move o ódio no mundo, seria a ”intolerância”. Nessa obra, que tornou-se também um clássico, e por conseguinte, considerada uma super produção para a época, Griffith abusou de sutilezas subliminares, para reforçar a tese de que fora mal interpretado em “The Birth of a Nation”, mas convenhamos, embora seja uma argumentação plausível, a polêmica nunca dissolveu-se, e até hoje, eleva a temperatura quando o assunto vem à baila, com opiniões pró e contra.
Independente disso, “The Birth of a Nation” tem o seu lugar garantido na história. Cem anos para comemorar, em termos de história do cinema. Cem anos para lamentar-se, enquanto manifesto pró-Ku Klux Klan.
Matéria publicada inicialmente no Jornal eletrônico Cinema Paradiso, nº 377, em 2015

6 comentários:

  1. Que maravilha de matéria, Luiz! Vou assistir ao filme, fiquei intrigada... depois coloco minha impressões aqui.
    bjs!

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    1. Tata :

      O filme é brilhante em se considerando sua época, tecnicamente falando, mas o tema é execrável por defender a indefensável instituição racista e truculenta, chamada "Ku Klux Klan".

      Aguardo suas impressões, depois que assisti-lo.

      Muito feliz por sua visita ao meu Blog !

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  2. Nunca tinha ouvido falar nesse filme Luiz! Havendo oportunidade quero assistir também!
    Essa questão dos atores brancos se travestirem de negros, não acompanha a mesma época do cantor Al Jonson? Bem, grosseira e anti-eticamente, justifica-se a criação da KKK...aos olhos deles...Bjs!

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    1. A aparição de Al Johnson "pintado" de negro, ocorreu muitos anos depois, em 1929, no primeiro filme sonoro da história (O Cantor de Jazz).

      Neste caso de "The Birth of a Nation", o ano foi 1915.

      Pois é...usar o filme como argumento para justificar a KKK foi uma "pisada de bola" imperdoável.

      Muito grato pela sua participação !!

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  3. Respostas
    1. Vindo de você, escritor Marcelino Rodriguez, essa afirmação é uma grande honraria para mim.

      Grande abraço, amigo !

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