domingo, 19 de fevereiro de 2017

Desprezo ao Passado - Por Luiz Domingues



Tenho como princípio pessoal, viver intensamente o presente e encarar o passado como um grande arquivo de experiências acumuladas, cujo teor eu posso usar como material de pesquisa, sempre que julgar necessário, ante qualquer situação em que uma experiência pregressa, boa ou má, poderá servir-me de alerta para não repetir equívocos ou a indicar um caminho diferente, doravante.  

E o futuro simplesmente não existe na minha maneira de enxergar a vida e para os que argumentam que não preocupo-me com o porvir, portanto seria um irresponsável, a minha contra-argumentação é a de que empreender o melhor no presente é a única solução plausível para construir um “futuro” melhor, portanto, é uma ação baseada na prudência, sem dúvida alguma. 

Já no cômputo final desse raciocínio, o futuro, é apenas uma projeção, uma expectativa idealizada, mentalizada e a vida transcorre em sua realidade apenas na ação viva do presente. Porém, sobre o passado, existem reflexões a serem consideradas. 
Em primeiro lugar, ao enxergar pelo lado mais psíquico e/ou místico da vida, existe a questão do apego às lembranças e claro que tal sentimento de nostalgia em demasia poderá vir a ser uma bola de neve auto-gerada que tende a rolar montanha abaixo, ao ganhar impulso, avolumar-se e quando percebemos, a avalanche já consumiu-nos e existem os casos em que nem notamos que já estamos soterrados. 

Certamente, neste aspecto, já trata-se de um caso patológico e passível de apoio da parte de profissionais da psicologia & psiquiatria ou mesmo os terapeutas holísticos versados em inúmeras técnicas alternativas e sob múltiplas visões. Portanto, deixo claro que é evidente que não concordo e compactuo com a ideia do apego doentio ao passado, sob a pena de não apenas adoecer-se psiquicamente, mas também pelo aspecto da sufocante estagnação em que qualquer pessoa que embarque nesse tipo de conduta, coloca-se em sua existência, e logicamente com repercussão imediata em seu entorno familiar; social, profissional etc.

Posto isso, o segundo aspecto alude ao contraponto da ideia exposta anteriormente, ou seja, o conceito do niilismo, que espalhou-se pela sociedade desde meados do século XIX, e que só ajudou a estigmatizar uma tendência para muitas pessoas (quiçá a maioria, ao dar-lhe uma suposta substância intelectual e acadêmica), ao demolir o passado, como se todo o progresso da civilização humana vivesse em torno de ciclos de destruição e reconstrução. O conceito de que uma estética tem que ser aniquilada para que nasça outra mais moderna, passa pelo sentimento do repúdio, portanto cria-se o sentimento de desprezo e isso sempre incomodou-me muito.

Desde criança, sempre nutri admiração pela história e ao contrário do pensamento generalizado, achava extraordinária a ideia da formação da civilização sob todos os aspectos, não só a pensar em questões culturais e subjetividades intelectuais, mas também no cotidiano, em termos de avanços tecnológicos a visar o progresso da humanidade, mesmo que visto pelo prisma mais prosaico e ingênuo de quem sempre espera a boa vontade nesse sentido, isto é, a minha perspectiva infantil em não levar em consideração os interesses escusos. 

Eu era ainda muito pequeno e já detestava a brincadeira recorrente das crianças em ironizar aspectos culturais até bem próximos de sua própria realidade, como por exemplo, as lembranças pessoais dos pais e avós. A expressão: “isso é do tempo de sua avó”, para diminuir qualquer coisa que remetesse ao passado, incomodava-me sobremaneira, pois eu não conseguia entender o por quê da observação desdenhosa. Qual o problema em ser alguma coisa do passado, em desuso, ou até obsoleta ? Qual o demérito em ter ficado para trás?

Senão, vejamos: o adolescente inebriado pela última novidade tecnológica de seu “Smartphone”, tende a pensar dessa forma desrespeitosa em relação ao passado, certamente. Mas é incrível como não estabeleça a conexão correta, que seria a de deduzir que se tem em mãos essa tecnologia moderna, isso não materializou-se do “nada” como pensam os niilistas (“Nihil” é o termo latim para “nada”, origem do conceito, ou seja, uma cultura que nasce da terra arrasada pela destruição do modus operandi do sistema anterior), mas que pelo contrário, é fruto de séculos de avanços científicos lentos; labuta, sacrifícios, muita “pestana” queimada e muitas vezes tais esforços a ser altamente periculosos, pois a ignorância generalizada sempre perseguiu cientistas, artistas & pensadores, ou seja, quem pensa e esforça-se para produzir luz em meio às trevas.

Então, como posso ironizar quem viveu antes, ao ridicularizar o seu modo de vida com menos tecnologia da qual disponho nos dias atuais; as suas convicções culturais, usos & costumes e tudo mais que for inerente, se o usufruto de tudo que serve-me agora, é obra da eterna construção do “presente” de cada um desses humanos que viveram antes de nós?

Sei que soa piegas, mas eu não desprezo tal predisposição e pelo contrário, reverencio o troglodita anônimo que pensou, pensou e construiu um objeto de circunferência redonda que ao girar sobre si mesmo, possibilitou impulsionar qualquer outro volume, incluso pessoas e objetos pesados, dentro de uma armação acoplada. 

Portanto, ao criar a “roda”, o avanço que proporcionou-nos foi incomensurável, na mesma medida que outro anônimo e igualmente genial “homem das cavernas”, percebeu que era possível gerar fogo através do atrito de gravetos e dessa maneira, não depender apenas de um fortuito raio cair do céu e fulminar uma árvore.

Assistir, "Laura", clássico "Noir" dos anos quarenta do século XX, obra do grande diretor, Otto Preminger, em Preto & Branco é muito melhor, sem dúvida

Ao falar sobre questões mais próximas de nós, não faz muito tempo, refiro-me à década de oitenta, produtores de cinema & TV resolveram “modernizar” a produção de filmes lançados em preto e branco, a tratar-se de um acervo enorme de clássicos dos anos, 1910 a 1950, principalmente, sob a alegação de que a juventude de então, rejeitava a filmografia antiga, por conta da ausência de cores, visto ser uma geração que nascera acostumada a ver filmes coloridos no cinema e sobretudo na TV. 

Uma safra de obras clássicas passou por um processo infame de “colorização por computadores”, como se propagou à época,  ao tornar as imagens padronizadas com uma horrível coloração pastel, opaca, e assim destruir completamente as opções de época, pensadas em contraste e brilho; uso de sombras para realçar a dramaturgia e signos inerentes próprios dessas obras etc. 

Ora, não seria mais lógico ensinar as crianças e adolescentes a entender que em 1940, um filme da escola, “Noir”, era perfeito nessas condições tecnológicas de sua época e não havia nada de “errado” nisso e pelo contrário, isso fora um recurso moderno para aquele momento (sem contar o caráter proposital sob o ponto de vista artístico, como já observei), e se tornou-se obsoleto, pelo aspecto tecnológico no decorrer dos tempos, é por que faz parte da absoluta normalidade do avançar humano dentro da história?

Qual o demérito dos Beatles em terem gravado muitas de suas músicas sob tecnologia hoje considerada obsoleta, com parcos dois canais de captura sonora em estúdio e quando passaram a gravar em quatro, foi um avanço de deixar à todos boquiabertos? Pois foi o máximo de tecnologia de áudio de que dispunham na época e claro que a excelência da obra artística suplanta qualquer consideração em contrário. 

Robert Johnson, um ícone do Blues, registrou a sua obra monumental em condições ainda mais precárias em 1936-1937, e isso diminuiu a sua relevância artística?

Homero escreveu a Odisséia em papiros, a usar tintas primitivas; Shakespeare com bico de pena de uma ave, Dostoiévksi com uma pesada e precária lamparina a iluminar o seu gabinete escuro etc. 

E assim, se formos a analisar ponto a ponto, são milhares, muito provavelmente milhões de itens a serem considerados sob quaisquer aspectos do desenvolvimento humano em que citarmos, em que tudo, absolutamente tudo, do pensamento filosófico mais sofisticado ao objeto mais simples de cozinha que você pagou R$ 1,99 na loja de bugigangas da esquina, que não seja fruto da longa jornada construída lentamente pela humanidade desde tempos imemoriais, portanto, o grande manancial de experiências construídas sob uma perspectiva de vivência “presente”, que sempre passa rápido e aloja-se em um “passado” que é acumulativo enquanto arquivo permanente. 

Dessa forma, nutrir desprezo por esse manancial, parece-me algo descabido. Em países desenvolvidos e com respeito à sua própria história, esse tipo de sentimento é muito reduzido, mas em um país como o Brasil, que pauta-se pelo paradigma do imediatismo, isso amplifica-se e ouso dizer, por esse motivo, o Brasil tem a falsa esperança de que vai ser “o país do futuro”, quando na verdade, se o futuro não existe na prática, e o presente é vivido em torno dessa ideia de postergação, aliado ao profundo desprezo ao passado, é bem óbvio que esse “futuro brilhante” não chegue nunca. 

Em suma, isso explica muita coisa, certamente.

8 comentários:

  1. Brasil - o país da proscratinação! Macunaíma que o diga! Excelente!

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    1. Olá, Christine !

      Nesse sentido em que observou, claro que concordo contigo. Somos mesmo um povo macunaímico, como Mário de Andrade tão bem observou, mas creio que não era exatamente esse o ponto que quis enfocar na minha matéria. Minha intenção era criticar a falta de memória e a mania contumaz em desprezar-se o passado, outras marcas indeléveis do povo brasileiro. Mas gostei de seu adendo, pois tem razão, somos também um povo preguiçoso e Macunaíma espelha a nossa alma.

      Grato, amiga !!

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  2. Procrastinação, corrigindo, sorry!

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    1. Sem problemas, amiga ! Erros de digitação ocorrem o tempo todo, mas o importante é que eu havia entendido perfeitamente, mesmo com a falta de uma letra.

      Valeu pela preocupação em corrigir !

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  3. Aí você ouve música dos 60 e 70 em contraponto aos hits de vários "estilos" atuais e é taxado de "velho", não somente pela idade mas por cultuar boa música (na minha opinião muitas obras de quaisquer das sete artes passaram a ser atemporais). E avaliam, sem ter escutado com a devida atenção, sem conhecer a história e as estórias por trás de cada artista, de cada obra, que é "música de velho, música chata". Ouvi isso de adolescentes de 20 e 13 anos..........
    O fato é que o "resgate" desse ou aquele artista, desta ou daquela obra é insuficiente para aprimorar a cultura de um povo, pois realmente não interessa essa memória questionadora e pensante. Não existe frescor nos pensamentos sem que haja um minimo de conhecimento do passado.
    Digitando estas mal traçadas (não resisti à lembrança de antigos cronistas) ouvindo Gerry Rafferty, lembrei de um post oportuno e recente do Xando Zupo no Facebook: essas crianças já pararam para apreciar um álbum, ao menos uma faixa sem se deixar distrair polo game ou pelo whatsapp?

    Super abraço!

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    1. Grande Gil !

      Que comentário bacana, meu amigo. De fato, a matéria abre campo para tal análise ser feita em diversos campos culturais e foi o que você fez ao abordar sob o prisma da boa música de outrora. Essa discussão é muito ampla, passa pelos interesses escusos dos mafiosos que dominam a difusão cultural e um monte de gente mancomunada, numa verdadeira cadeia bem organizada a construir-se uma formação de opinião atendendo-os. Mas voltando ao foco do que você muito bem observou, o fato da criançada de hoje em dia ter sido abduzida pela tecnologia a desviar-lhe a atenção, ajuda ainda mais os inescrupulosos de plantão que lucram muito em difundir música desprezível que sai de validade numa velocidade estonteante. Se já estão sem paciência alguma para parar e ouvir um álbum, absorvendo o conceito de uma obra pelo todo, com tal tipo de distração é que não vão interessar-se, mesmo e pior, vou além e digo que essa geração atual, nem sabe o que é um álbum, denotando que o estrago é ainda muito pior do que imaginamos.

      Grato pelo rico comentário !!

      Grande abraço !!

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